1. Supressão do artigo primeiro do
texto aprovado pelo Senado que estabelecia os princípios jurídicos de
interpretação da lei que lhe garantia a essência ambiental no caso de
controvérsias judiciais ou administrativas. Sem esse dispositivo, e
considerando-se todos os demais problemas abaixo elencado neste texto, fica
explícito que o propósito da lei é simplesmente consolidar atividades
agropecuárias ilegais em áreas ambientalmente sensíveis, ou seja, uma lei de
anistia florestal. Não há como sanar a supressão desses princípios pelo
veto.
2. Utilização de conceito incerto e
genérico de pousio e supressão do conceito de áreas abandonadas e
subutilizadas. Ao definir pousio como período
de não cultivo (em tese para descanso do solo) sem limite de tempo (Art. 3
inciso XI), o projeto permitirá novos desmatamentos em áreas de preservação
(encostas, nascentes etc.) sob a alegação de que uma floresta em regeneração
(por vezes há 10 anos ou mais) é, na verdade, uma área agrícola “em descanso”.
Associado ao fato de que o conceito de áreas abandonadas ou subutilizadas,
previsto tanto na legislação hoje em vigor como no texto do Senado, foi
deliberadamente suprimido, teremos um duro golpe na democratização do acesso e
da terra, pois áreas mal-utilizadas, possuídas apenas para fins especulativos,
serão do dia para a noite terras “produtivas em descanso”. Essa brecha enorme
para novos desmatamentos não pode ser resolvida com veto.
3. Dispensa de proteção de 50 metros no
entorno de veredas (inciso XI do ART. 4º ART). Isso significa a
consolidação de ocupações ilegalmente feitas nessas áreas como também novos
desmatamentos no entorno das veredas hoje protegidas. Pelo texto
aprovado, embora as veredas continuem sendo consideradas área de preservação,
elas estarão na prática desprotegidas, pois seu entorno imediato estará sujeito
a desmatamento, assoreamento e possivelmente a contaminação com agroquímicos.
Sendo as veredas uma das principais fontes de água do Cerrado, o prejuízo é enorme,
e não é sanável pelo veto presidencial.
4. Desproteção às áreas úmidas
brasileiras. Com a mudança na forma de cálculo das áreas de preservação ao
longo dos rios (art.4o), o projeto deixa desprotegidos, segundo cálculos do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), 400 mil km2 de várzeas e
igapós. Isso permitirá que esses ecossistemas riquíssimos possam ser ocupados
por atividades agropecuárias intensivas, afetando não só a biodiversidade como
a sobrevivência de centenas de milhares de famílias que delas fazem uso
sustentável.
5. Aumento das possibilidades legais de
novos desmatamentos em APP - O novo texto (no §6º do Art4°) autoriza
novos desmatamentos indiscriminadamente em APP para implantação de projetos de
aquicultura em propriedades com até 15 módulos fiscais (na Amazônia,
propriedades com até 1500ha – na Mata Atlântica propriedades com mais de mil
hectares) e altera a definição das áreas de topo de morro reduzindo
significativamente a sua área de aplicação (art.4º, IX). Em nenhum dos dois
casos o Veto pode reverter o estrago que a nova Lei irá causar, ampliando as
áreas de desmatamento em áreas sensíveis.
6. Ampliação de forma ampla e
indiscriminada do desmatamento e ocupação nos manguezais ao separar os
Apicuns e Salgados do conceito de manguezal e ao delegar o poder de ampliar e
legalizar ocupações nesses espaços aos Zoneamentos Estaduais, sem qualquer
restrição objetiva (§§ 5º e 6º do art. 12). Os estados terão amplos
poderes para legalizar e liberar novas ocupações nessas áreas. Resultado –
enorme risco de significativa perda de área de manguezais que são cruciais para
conservação da biodiversiadade e produção marinha na zona costeira. Não tem com
resgatar pelo Veto as condições objetivas para ocupação parcial desses
espaços tão pouco o conceito de manguezal que inclui apicuns e salgados.
7. Permite que a reserva legal na
Amazônia seja diminuída mesmo para desmatamentos futuros, ao não estabelecer,
no art. 14, um limite temporal para que o Zoneamento Ecológico Econômico
autorize a redução de 80% para 50% do imóvel. A lei atual já traz essa
deficiência, que incentiva que desmatamentos ilegais sejam feitos na
expectativa de que zoneamentos futuros venham legaliza-los, e o projeto não
resolve o problema.
8. Dispensa de recomposição de APPs. O texto
revisado pela Câmara ressuscita a emenda 164 (aprovada na primeira votação na
Câmara dos Deputados, contra a orientação do governo) que consolida todas as
ocupações agropecuárias existentes às margens dos rios, algo que a ciência
brasileira vem reiteradamente dizendo ser um equívoco gigantesco. Apesar de
prever a obrigatoriedade de recomposição mínima de 15 metros para rios
inferiores a 10 metros de largura, fica em aberto a obrigatoriedade de
recomposição de APPs de rios maiores, o que gera não só um possível paradoxo
(só partes dos rios seriam protegidas), como abre uma lacuna jurídica imensa, a
qual só poderá ser resolvida por via judicial, aumentando a tão indesejada
insegurança jurídica. O fim da obrigação de recuperação do dano
ambiental promovida pelo projeto condenará mais de 70% das bacias hidrográficas
da Mata Atlântica, as quais já tem mais de 85% de sua vegetação nativa
desmatada.Ademais, embora a alegação seja legalizar áreas que já estavam
“em produção” antes de supostas mudanças nos limites legais, o projeto
anistia todos os desmatamentos feitos até 2008, quando a última modificação
legal foi em 1986. Mistura-se, portanto, os que agiram de acordo com a lei da
época com os que deliberadamente desmataram áreas protegidas apostando na impunidade
(que o projeto visa garantir). Cria-se, assim, uma situação anti-isonômica,
tanto por não fazer qualquer distinção entre pequenos e grandes proprietários
em situação irregular, como por beneficiar aqueles que desmataram ilegalmente
em detrimento dos proprietários que o fizeram de forma legal ou mantiveram suas
APPs conservadas. É flagrante, portanto, a falta de razoabilidade e
proporcionalidade da norma contida no artigo 62, e um retrocesso
monumental na proteção de nossas fontes de água.
9. Consolidação de pecuária improdutiva
em encostas, bordas de chapadas, topos de morros e áreas em altitude acima de
1800 metros (art. 64) o que representa um grave problema ambiental
principalmente na região sudeste do País pela instabilidade das áreas
(áreas de risco), inadequação e improdutividade dessas atividades nesses
espaços. No entanto, o veto pontual a esse dispositivo inviabilizará atividades
menos impactantes com espécies arbóreas perenes (café, maçã dentre outras) em
pequenas propriedades rurais, hipóteses em que houve algum consenso no debate
no Senado. O Veto parcial resolve o problema ambiental das encostas no entanto
não resolve o problema dos pequenos produtores.
10. Ausência de mecanismos que induzam
a regularização ambiental e privilegiem o produtor que preserva em relação ao
que degrada os recursos naturais. O projeto revisado pela Câmara
suprimiu o art. 78 do Senado, que vedava o acesso ao crédito rural aos
proprietários de imóveis rurais não inscritos no Cadastro Ambiental Rural - CAR
após 5 anos da publicação da Lei. Retirou também a regra que vedava o
direcionamento de subsídios econômicos a produtores que tenham efetuado
desmatamentos ilegais posteriores a julho de 2008. Com isso, não só não haverá
instrumentos que induzam a adesão aos Programas de Regularização Ambiental,
como fica institucionalizado o incentivo perverso, que premia quem descumpre
deliberadamente a lei. Propriedades com novos desmatamentos ile gais poderão
aderir ao CAR e demandar incentivos para recomposição futura. Somando-se ao
fato de que foi retirada a obrigatoriedade de publicidade dos dados do CAR,
este perde muito de seu sentido. Um dos únicos aspectos positivos de todo
projeto foi mutilado. Essa lacuna não é sanável pelo veto. A lei perde um dos
poucos ganhos potenciais para a governança ambiental.
11. Permite que imóveis de até 4
módulos fiscais não precisem recuperar sua reserva legal (art.68), abrindo
brechas para uma isenção quase generalizada. Embora os defensores do projeto
argumentem que esse dispositivo é para permitir a sobrevivência de pequenos
agricultores, que não poderiam abrir mão de áreas produtivas para manter a
reserva, o texto não traz essa flexibilização apenas aos agricultores
familiares, como seria lógico e foi defendido ao longo do processo legislativo
por organizações socioambientalistas e camponesas. Com isso, permite que mesmo
proprietários que tenham vários imóveis menores de 4 MF - e, portanto,
tenham terra mais que suficiente para sua sobrevivência - possam se isentar da
recuperação da RL. Ademais, abre brechas para que imóveis maiores do que esse
tamanho, mas com matrículas desmembradas, se beneficiem dessa isenção. Essa
isenção fará com que mais de 90% dos imóveis do país sejam dispensados de
recuperar suas reservas legais e jogaria uma pá de cal no objetivo de
recuperação da Mata Atlântica, pois, segundo dados do Ipea, 67% do passivo de
reserva legal está em áreas com até 4 módulos.
12. Cria abertura para discussões
judiciais infindáveis sobre a necessidade de recuperação da RL (art.69). A pretexto de deixar
claro que aqueles que respeitaram a área de reserva legal de acordo com as
regras vigentes à época estão regulares, ou seja, não precisam recuperar áreas
caso ela tenha sido aumentada posteriormente (como ocorreu em áreas de floresta
na Amazônia, em 1996), o projeto diz simplesmente que não será necessário
nenhuma recuperação, e permite que a comprovação da legalidade da ocupação
sejam com “descrição de fatos históricos de ocupação da região, registros de
comercialização, dados agropecuários da atividade”. Ou seja, com simples
declarações o proprietário poderá se ver livre da RL, sem ter que comprovar com
autorizações emitidas ou imagens de satélite que a área efetivamente havia sido
legalmente desmatada.
13. Desmonte do sistema de controle da
exploração de florestas nativas e transporte de madeira no País. O texto do PL
aprovado permite manejo da reserva legal para exploração florestal sem
aprovação de plano de manejo (que equivale ao licenciamento obrigatório para
áreas que não estão em reserva legal), desmonta o sistema de controle de origem
de produtos florestais (DOF – Documento de Origem Florestal) ao permitir que
vários sistemas coexistam sem integração. A Câmara rejeitou o parágrafo 5º do
art. 36 do Senado o que significa a dispensa de obrigação de integração dos
sistemas estaduais com o sistema federal (DOF). Como a competência por
autorização para exploração florestal é dos estados (no caso de propriedades
privadas rurais e unidades de conservação estaduais) o governo federal perde
completamente a governança sobre o tráfico de madeira extraída ilegalmente
(inclusive dentro de Unidades de conservação federais e terras indígenas) e de
outros produtos florestais no País. Essa lacuna não é sanável pelo veto
presidencial.
Há ainda outros pontos problemáticos no
texto aprovado confirmado pela Câmara cujo veto é fundamental e que demonstram
a inconsistência do texto legal, que se não for vetado por completo resultará
numa colcha de retalhos.
A todos estes pontos se somam os vícios
de origem insanáveis deste PL como é o caso da definição injustificável da data
de 22 de julho de 2008 como marco zero para consolidação e anistia de todas
irregularidades cometidas contra o código florestal em vigor desde 1965. Mesmo
que fosse levado em conta a última alteração em regras de proteção do código
florestal esta data não poderia ser posterior a 2001, isso sendo muito
generoso, pois a última alteração em regras de APP foi realizada em 1989.
Por essas razões não vemos alternativa
sensata à Presidente da República se não o Veto integral ao PL 1876/99.
* Em 02 de maio de 2012, por André
Lima – Advogado, mestre em Política e Gestão Ambiental pela UnB,
Assessor de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
(IPAM), Consultor Jurídico da Fundação SOS Mata Atlântica e Sócio-fundador do
Instituto Democracia e Sustentabilidade, Raul Valle –
Advogado, mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo e Coordenador Adjunto do Instituto Socioambiental e Tasso
Azevedo – Eng. Florestal, Consultor e Empreendedor Sociambiental,
Ex-Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro.
Um comentário:
gostei muito do seu blog.
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